Capital tradutológico e defesa da língua mirandesa
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As línguas minoritárias enfrentam barreiras internas e externas que impedem o seu desenvolvimento, devido à sua natureza de línguas e culturas não dominantes e à sua fraca representação (e representatividade) na política e na sociedade. A tradução de literatura canónica da cultura ou religião dominantes para a língua minoritária é de importância fulcral para a afirmação destas línguas, assim como para o acesso aos mais diversos meios de comunicação. A Catalunha surge como um exemplo de forte investimento na função
destes meios e na utilização do catalão na rádio, televisão, teatro e cinema, a par da tradução que ocorre nestes meios (i.e. legendagem, dobragem e audiodescrição). Para além disso, não se deve negligenciar o peso da ciberesfera, que possibilita às línguas minoritárias entrarem no mundo virtual, por meio de blogs, páginas da Wikipedia, redes sociais e afins. Em 1999, estabeleceu-se legalmente o reconhecimento oficial dos direitos linguísticos da comunidade mirandesa, aproximadamente 100 anos depois de Leite de Vasconcellos ter produzido a obra Estudos de Filologia Mirandesa, evidenciando a ancestralidade e importância desta língua de origem asturo-leonesa. (cf. Vasconcelos, José Leite, 1900-1901). Depois desta data, o enquadramento legal para o mirandês e a sua normalização linguística foram estabelecidos, nomeadamente por meio do seu acordo ortográfico, que consolidou o ensino da língua. Quinze anos depois, em 2014, a
Associação de Língua Mirandesa (ALM) foi refundada e transferida de Lisboa para Miranda do Douro, com o propósito de fomentar a investigação e o ensino da língua, assim como recolher e preservar o património imaterial, no qual a tradução não está diretamente implicada. Desta forma, na nossa perspetiva, ainda se vislumbra a necessidade de introduzir uma forte política linguística, dentro da qual um Departamento de Tradução possa estar inserido, com vista à revitalização da língua e à consolidação da sua literatura.
Identifica-se também a ausência de um corpo de tradutores profissionais que sejam simultaneamente proficientes em português e em mirandês, uma vez que o ensino do mirandês se restringe grandemente a Miranda do Douro e como disciplina optativa. No entanto, a tradução de português e outras línguas estrangeiras para mirandês é desenvolvida por uma elite intelectual que investe nesta atividade aliada, por vezes, à produção também em mirandês. Este é o caso de Amadeu Ferreira, um académico de destaque que deixou de estar entre nós em março de 2015 e foi responsável por um número substancial de obras. O seu percurso é de particular relevância, não só porque o mirandês acusava a ausência de literatura canónica traduzida, na linha do que existe em português, mas também de literatura ficcional, sem deixar de referir obras de referência em termos lexicográficos e gramaticais. No cômputo das suas obras, são de referir a tradução para mirandês dos “Quatro Evangelhos”, “Lusíadas” de Luís Vaz de Camões e “A Mensagem” de Fernando Pessoa, obras de Horácio, Virgílio e Catulo e aventuras de Astérix. A par da tradução, escreveu igualmente ficção sob pseudónimos, que possibilitaram a expansão do património literário em mirandês. Colaborou ainda com meios de comunicação social regionais e escreveu textos em diversos blogs. Neste contexto, o nosso projeto direciona-se para a recolha de informação relativa a todas as obras traduzidas para mirandês, destacando as línguas das quais foram traduzidas, os tradutores que as realizaram e os seus perfis. Este exercício permitir-nos-á refletir criticamente sobre as obras que foram eleitas para tradução, as razões que possivelmente ditaram esta escolha e o impacto que estas produziram nesta comunidade linguística com
aproximadamente 10 000 falantes. Todo este esforço de tradução e produção literária tem adiado o desaparecimento do mirandês, que tantos previam que já se tivesse verificado; mas será o mirandês capaz de sobreviver no século XXI?