Preservação vs. utilização do território: A nova utilidade social do pastor e o acesso às terras de pastagens
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Reconhecer um território como paisagem cultural tende a outorgar à sua beleza e/ou
biodiversidade um valor universal, retirando à população local sua legitimidade unilateral
de decisão sobre o uso desse território. A conservação da paisagem torna-se prioritária e
passa a ter precedência sobre a continuidade das atividades humanas que podem vir a
ameaçá-la. Contudo, paisagens culturais são territórios historicamente construídos frutos
da ativa interação entre o ambiente natural e as comunidades humanas. A alteração desse
equilíbrio construído pode provocar tanto degradações ambientais como injustiças a
populações que da terra tiravam o seu sustento. Inúmeros casos ilustrativos dessa relação
estão disponíveis na literatura. Em Portugal, agricultura, pastorícia e queimadas foram os
agentes dominantes de modelação da paisagem desde o Neolítico. No decorrer do século
XX, entretanto, a expansão da área florestal nos baldios e o seu fecho a outros usos
provocou uma asfixia do sistema agropastoril tradicional e induziu uma rápida
modificação da ocupação e do uso da terra, especialmente em regiões onde a pastorícia
era importante. Com o gado proibido de acessar as novas florestas, a pastorícia foi
seriamente comprometida por falta de pastos. A fragmentação do equilíbrio territorial que
prevalecia propulsionou comunidades pastoris a uma situação de precariedade e
vulnerabilidade social, e deu espaço a um regime de incêndios descontrolado conhecido
como Terceiro Fogo. Há, hoje, um discurso crescente que reconhece a utilidade social da
pastorícia na manutenção da biodiversidade e prevenção de incêndios florestais. O
discurso, no entanto, induz mudanças nas práticas e relações sociais. Após contextualizar
esse processo de desarticulação do equilíbrio territorial em Portugal, este trabalho procura
retratar o cotidiano de pastores – agora então cunhados de utilidade social – no acesso às
terras de pastagens. Ele resulta de uma investigação de doutoramento em antropologia
em curso, cujos dados são coletados através de diálogos e observação no Centro e no
Norte do país. Resultados preliminares indicam que a reconciliação das antes antagônicas
dinâmicas de conservação da natureza e utilização do território ainda não é efetiva. O
cotidiano de pastores depara-se com múltiplos constrangimentos oriundos de uma visão
conservacionista do ambiente. Da construção de infraestruturas necessárias à pastorícia
ao pastoreio em zonas florestais, pastores têm de lidar com comportamentos individuais
de autoridades e regulamentos de ordenamento do território restritivos que podem levar
até ao abandono da atividade. O programa das “cabras sapadoras” é, nesse sentido,
positivamente percebido pelo seu potencial de promover a legitimidade social da
pastorícia.