O lagostim-de-patas-brancas do rio Angueira: a mim lembra-se-me que...
Conference Paper
Overview
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abstract
No Nordeste Transmontano os sentidos são vigorosos, puros, primitivos. Estranhamente
naturais. Estranhamente humanos. Ao cinzento opõem-se a cor, ao frio o calor, às pedras os
aromas, às plantas os animais, aos animais as pessoas, às pessoas de cá as pessoas de fora, ao
homem a mulher... Ao real o simbólico.
O protagonista desta comunicação é o lagostim-de-patas-brancas (Austrapotamobius
pallipes), também conhecido por lagostim do rio Angueira, ou cangrejo. Em um século de história,
espaço temporal da sua existência conhecida naquele rio, o cangrejo impregnou o quotidiano das
populações ribeirinhas e vizinhas: como actividade económica, em tempo de privação; como
símbolo de identidade local e nacional; como elemento de laços de amizade e pertença; como
objecto de descoberta e identidade sexual. O lagostim não é sujeito único, real ou simbólico, a
desempenhar este papel por terras transmontanas, mas é rara a rapidez e intensidade com que o
protagonizou.
Ainda hoje se sente aquilo que podemos designar como a “febre do lagostim”, tal o
entusiasmo e disponibilidade dos nossos interlocutores. Graças a ela obtivemos entrevistas (com
pescadores portugueses e espanhóis) para o minuto seguinte, participamos em debates de rua
espontâneos, fomos conduzidos aos locais “sagrados” da pesca, trilhamos os caminhos do
contrabando, ouvimos relatos longos, acedemos a arquivos com rara facilidade, fizeram-nos
desenhos e objectos e repetiram-nos gestos de pesca. E, no fim, quase todos perguntavam com o
coração a rebentar de saudade: E então o cangrejo vai voltar ao rio?
Estabelecendo uma ordem cronológica aos acontecimentos pudemos clarificar muitos
aspectos do desaparecimento do lagostim no Angueira. Todavia, encontramos uma, e uma só,
conclusão inequívoca e incontornável: o Homem, não interessa se português se espanhol, se
criança se adulto, se anónimo se figura conhecida, se técnico se político, não foi capaz de gerir
racionalmente o recurso natural - lagostim. Esta comunicação tem por objectivo principal lançar um alerta contra a delapidação de
recursos naturais nacionais e transmontanos, em particular. Pretende-se que a comunidade
científica, técnica e política, e a sociedade em geral, se mobilize no sentido de que os cogumelos,
os espargos bravios (Asparagus acutifolius), as merujas (Montia fontana), entre outros, não
tenham a mesma “morte anunciada”.
A trama desta história é longa e variada e será contada num livro que aguarda publicação.
Neste encontro centramo-nos nas seis hipóteses de causa de extinção, as quais alimentaram
discussões inúteis, se não patéticas, que entretiveram, pescadores, políticos, técnicos e
académicos, enquanto o lagostim agonizava. Porém, no ponto quatro, descreveremos com algum
pormenor os aspectos relacionados com a importância económica e sociocultural do lagostim,
para que se tenha a noção de que não se perdeu apenas uma espécie animal, mas também um
“modo de vida”.